Notícias recentes mostram a pujança do setor no país, com crescimentos robustos e serviços inovadores que inspiram o Spotify
Por Ricardo Silva, de São Paulo
Uma pessoa com fones de ouvido e a bandeira da China ao fundo: mercado gigante e cada vez mais 'inspirador'. Foto: Shutterstock
Há menos de dez anos, a China ainda saía em notas e reportagens da UBC como um lugar de desrespeito aos direitos autorais, com acusações de pirataria feitas por grandes players internacionais (gravadoras, sociedades de autores) até mesmo contra os canais de TV estatais do país. Desde então, uma série de acordos fechados, uma real aproximação entre a China e a Cisac (Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores) e a consolidação de enormes companhias de streaming misturadas a redes sociais tornaram a nação asiática um exemplo de pujança no mercado musical. Só nas duas últimas semanas, várias notícias ajudam a consolidar essa imagem.
Uma delas é o balanço trimestral da NetEase, segunda maior plataforma de streaming/rede social do país. Divulgado no fim de semana, mostrou um crescimento de nada menos que 25,5% nos valores arrecadados com assinaturas de streaming em relação ao segundo trimestre de 2023. Os jovens chineses, antes céticos em relação aos pacotes pagos, estão cada vez mais dispostos a aderir a serviços por assinatura que trazem a possibilidade de interações variadas entre fãs, como chats, acesso a fã-clubes exclusivos, lançamentos exclusivos de artistas com janelas de até um mês de antecipação, serviço de karaokê etc.
“Não é de hoje que a China vem inovando na oferta de produtos atrelados ao streaming. Eles já foram pioneiros em ter recursos de redes sociais misturados à audição de músicas pura”, resume Mathew Daniel, por anos vice-presidente internacional da NetEase.
Em julho, quando o Spotify anunciou um tímido passo em direção a esse modelo híbrido de rede social e plataforma de streaming tão comum na China — estreando a possibilidade de avaliar e comentar episódios de podcasts —, Daniel afirmou que o Ocidente está demorando demais para adotá-lo.
“O sistema de comentários diretos e avaliações são uma verdadeira baliza do que é bom ou não é, do que faz sucesso ou não. São celebrados como um disco de ouro por lá”, ele descreveu. “A China, não é de agora, consome música através de redes sociais ou em plataformas de streaming que obrigatoriamente trazem comentários, avaliações e a possibilidade de comunicação direta entre os próprios fãs, além de muitas outras funcionalidades, que incluem até pagamentos de produtos online ou a aquisição de experiências com os artistas. Esse modelo está demorando demais para chegar ao Ocidente.”
Outra empresa que o adotou com força é a Tencent, líder do mercado chinês, que também reportou resultados consistentes. Em seu recém-divulgado balanço do primeiro semestre de 2024, a operadora afirmou ter adicionado nada menos que 10 milhões de novos assinantes entre janeiro e junho. São mais dos que os cerca de 8 milhões ganhos pelo Spotify no mesmo período.
O total de pagantes dos serviços de streaming de áudio (com funcionalidades de redes sociais como a rival NetEase) ainda é de menos da metade do Spotify: 117 milhões para os chineses, 246 milhões para os suecos. Mas muitos não têm dúvida de que o ritmo de crescimento mais rápido da base da Tencent, além da oferta de muitíssimos mais serviços para além do streaming de áudio em si, farão com que a empresa ameace a hegemonia da líder mundial.
“O mercado chinês de internet é extremamente robusto. São mais de 900 milhões pessoas que usam todos os meses aplicativos e sites, mais de 1 bilhão de smartphones. Embora considere-se que a Índia ultrapassou a população chinesa há alguns meses, ainda não há qualquer comparação em termos de poder econômico entre os dois países. A China tem o maior PIB mundial em paridade de poder de compra, bem à frente do americano, uma população ainda bastante jovem, se comparada com a europeia ou a japonesa, e um apetite inesgotável por novidades”, diz Elaine Brandão, analista do mercado musical.
Num comunicado enviado à reportagem, o presidente do Conselho de Administração da Tencent, Cussion Pang, corrobora o que diz a analista:
"Com mais de 10 milhões de novos assinantes líquidos no primeiro semestre de 2024 e expansão da receita líquida paga por usuário, continuamos a abrir novos caminhos no cenário de streaming da China. Seguimos otimistas sobre o potencial de longo prazo da nossa indústria musical e estamos comprometidos em alcançar nossos objetivos de médio a longo prazo de forma sustentável, em um ritmo saudável e com o equilíbrio certo.”
A prova de que os olhos do mercado estão voltados para a empresa dele é que o Spotify, conforme o site Music Business Worldwide (MBW) publicou há alguns dias, trabalha para lançar “em breve” um pacote ultra-VIP para cobrar uma assinatura cinco vezes mais alta de quem estiver disposto a pagar. A inspiração seria o modelo lançado pela Tencent que, na China, oferece algumas das experiências que mencionamos acima, como interações exclusivas com artistas, além de toda uma gama de opções de karaokê.
Além disso, a Tencent aprimorou “consideravelmente” a qualidade do som dos seus streams, algo que o Spotify também promete fazer em seu eventual pacote ultra-VIP. Esta é, talvez, a maior pedra no sapato do gigante sueco em comparação com seus rivais ocidentais, como Apple Music, Amazon Music e Deezer. Todas elas já oferecem alta fidelidade de som (hi-fi) num percentual considerável do seu catálogo, enquanto o Spotify ainda patina nisso.
Outras vantagens da assinatura ultra-VIP da Tencent são, por exemplo, poder acessar lançamentos exclusivos de grandes artistas do k-pop (o pop da Coreia do Sul) com muita antecipação em relação ao resto do mundo. E mais: os ídolos interagem exclusivamente com os seus fãs na plataforma.
“Também há reservas de ingressos para eventos ao vivo exclusivos, como o Tencent Music Entertainment Awards, e mais privilégios. Com isso, estamos certos de que o novo pacote está conquistando corações entre nossos assinantes”, disse Ross Liang, CEO da Tencent, no mesmo comunicado obtido pela UBC.
Segundo o MBW, embora ainda não haja dados consolidados de adesão, há “indícios” de que o modelo esteja sendo abraçado por suficientes assinantes chineses, sugerindo mais uma tendência do mercado que sai de lá para chegar ao Ocidente.
Bandeira da Tencent na fachada da Bolsa de Nova York: influência global crescente. Foto: Shutterstock
Outra poderia vir a ser o modelo de criação de plataformas de streaming com músicas exclusivamente geradas por inteligência artificial (IA). Na semana passada, a gigante chinesa de tecnologia Kunlun Tech, que tem um valor de mercado de US$ 4,8 bilhões (coisa de R$ 26 bilhões), lançou o que afirma ser "a primeira plataforma de streaming de música movida por IA do mundo".
A empresa diz que seu novo serviço Melodio oferece "streams de música personalizados e gerados por IA, adaptados ao humor e aos cenários dos usuários.” A Kunlun afirma ter uma base média de quase 400 milhões de usuários ativos mensais nos setores de "IA generativa, distribuição de conteúdo, metaverso, entretenimento social e jogos”. E já foi investidora ou coproprietária de empresas tão variadas como o TikTok e a plataforma de relacionamentos gays Grindr.
Segundo a Kunlun, o novo serviço Melodio permite que os usuários insiram comandos como "música enérgica para uma longa viagem" ou "músicas suaves para o café da manhã". O serviço, então, "cria instantaneamente um stream de música personalizado que se encaixa na ocasião".
A Kunlun alega que a criação de um serviço assim não competirá com compositores reais na geração de royalties, já que as leis atuais não permitem que 'composições' sem a participação humana recebam direitos autorais.
Qualquer que seja a aceitação e eventual adoção de algo parecido em outros países, não há dúvida de que a influência e o prestígio dos modelos de negócio musicais surgidos no país do TikTok são evidentes e se refletem também na escalada chinesa no ranking internacional de maiores mercados da IFPI - Federação Internacional da Indústria Fonográfica. Há apenas 10 anos, ou seja, no relatório de 2014, a China era o 21º maior mercado na geração de royalties e receitas legalmente para a indústria. Desde então, vem subindo sem parar e já chegou, segundo a edição mais recente do documento anual da entidade, ao quinto lugar, atrás apenas de Estados Unidos, Japão, Reino Unido e Alemanha — e à frente do Brasil, em nono.
“Ainda há resistência do Ocidente em olhar para lá em busca de ideias e novas soluções para um mercado, o do streaming, que precisará inovar continuamente se quiser se manter como o líder da indústria musical nas próximas décadas”, diz Brandão. “Talvez tenha a ver com histórico de pirataria, não só na música mas na indústria: antes, dizia-se maldosamente que a China abria um produto industrial qualquer do Ocidente, aprendia a copiá-lo, o fazia mal e o vendia em versões baratas ao mundo. Isso não pode estar mais longe do que ocorre hoje. Quem ainda não tem os olhos voltados para o que se faz por lá está perdendo um tempo precioso e, claro, perdendo muito dinheiro também.”
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