DAVID McFADDEN
DA ASSOCIATED PRESS, EM CITÉ SOLEIL (HAITI)
DE SÃO PAULO
Algumas dezenas de soldados brasileiros usando os capacetes azuis da força militar da ONU (Organização das Nações Unidas) percorrem um labirinto de barracos na favela mais notória do Haiti. Nas ruas onde no passado ocorriam tiroteios diários entre gangues e militares da força de paz, hoje a maior ameaça que os soldados enfrentam são alguns cachorros latindo.
Anos de patrulhas tranquilas como esta numa tarde recente no distrito pobre de Cité Soleil são vistos por muitos no Haiti e no mundo como sinal claro de que é hora de encerrar uma força da ONU que está presente neste país caribenho desde 2004, quando uma rebelião mergulhou o Haiti em violência.
"Temos um ambiente seguro e estável", disse à agência de notícias Associated Press o coronel Luis Antonio Ferreira Marques Ramos, segundo em comando do contingente brasileiro na força de paz. "O importante é sairmos bem."
Questionados pela Folha, o Ministério da Defesa, que coordena a parte brasileira na missão, informou não ter sido notificado de nenhum fim de operações. O Itamaraty também não havia sido notificado.
Com a redução constante das operações de paz no Haiti nos últimos anos e a intenção da administração americana do presidente Donald Trump de reduzir suas contribuições, a ONU pretende mandar para casa 2.358 soldados de 19 países que contribuem para sua missão no Haiti, possivelmente no prazo de alguns meses.
O chefe das operações de paz da ONU, Hervé Ladsous, disse em viagem recente ao Haiti que o componente militar da missão "provavelmente vai desaparecer no futuro relativamente próximo", apesar de as autoridades não terem se pronunciado publicamente sobre os cerca de 2.200 policiais estrangeiros que acompanham os militares.
Washington, a principal financiadora da missão no Haiti, está aplicando pressão e fazendo uma revisão de todas as 16 missões de paz da ONU. Exigindo anonimato para falar, um diplomata disse à AP que a nova embaixadora dos EUA na ONU, Nikki Haley, já falou em encerrar a missão de paz no Haiti, conhecida por sua sigla em francês, Minustah.
"A Minustah, no Haiti, é um ótimo exemplo de uma missão que basicamente já cumpriu seu propósito. Então ficaremos muito satisfeitos se ela for fechada", disse o embaixador britânico na ONU, Matthew Rycroft, em entrevista coletiva na sede da ONU em Nova York.
A expectativa é que o Conselho de Segurança da ONU tome uma decisão sobre a reconfiguração da Minustah, que consome US$ 346 milhões (R$ 1,1 bilhão) ao ano, em meados de abril, após rever as recomendações de Ladsous.
Mesmo assim, enviar as tropas para casa não significará o fim da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti.
Operações como as da Unicef (Fundo da ONU para a Infância) e do Programa Mundial de Alimentos também vão continuar presentes no país. E analistas dizem que as autoridades estudam a possibilidade de manter os funcionários civis da Minustah, além de um componente policial da ONU, para continuar a formar e treinar a Polícia Nacional do Haiti.
"Isso seria algo sem precedentes na história das missões de paz da ONU. Normalmente, policiais só participam de missões de paz com apoio militar. Mas é uma opção criativa para reduzir as dimensões e os custos da missão, enquanto ela se prepara para uma saída plena", disse Aditi Gorur, que, diretor do think tank Stimson Center, em Washington, que pesquisa questões relativas a missões de paz.
A primeira missão de estabilização da ONU chegou ao Haiti em 2004, após uma rebelião que depôs o presidente Jean-Bertrand Aristide e deixou o país, cronicamente turbulento, à beira do colapso.
Choques mortais ocorriam diariamente entre gangues leais à facção de Aristide, rebeldes, ex-soldados e policiais extraoficiais. Seguiu-se uma onda de assassinatos e sequestros visando desestabilizar o governo interino apoiado pelos Estados Unidos.
Durante anos, as tropas uniformizadas da ONU foram a única fonte real de segurança no país.
Hoje em dia, porém, a polícia haitiana faz a maior parte do trabalho pesado, e o ambiente mudou. As forças da ONU levaram três anos para controlar a cidade de Cité Soleil, mas hoje a situação ali é de paz, apesar da miséria abjeta em que vivem seus habitantes.
Jornalistas da AP acompanharam recentemente algumas dezenas de membros da missão da ONU e quatro policiais haitianos numa patrulha a pé e montando guarda em barreiras num bairro de Cité Soleil no passado controlado por quadrilhas.
"O trabalho foi bem feito!" disse o capitão brasileiro Leandro Vieira Barbosa aos policiais haitianos após a patrulha conjunta. "Depois que a missão terminar, sei que o bom trabalho de vocês vai seguir adiante."
Diante da relativa estabilidade, parlamentares haitianos argumentam que é hora de o Haiti finalmente tomar conta de sua própria segurança.
"O governo precisa negociar a saída da Minustah assim que possível", disse o senador Patrice Dumont, representante da região Ocidental, que abrange 40% do eleitorado haitiano.
Mas o presidente Jovenel Moise e líderes do Legislativo dizem que a força policial muito melhorada ainda não é o bastante. Eles querem uma força militar real para tomar o lugar do Exército, abolido em 1995 após uma longa história de golpes de Estado e violações dos direitos humanos. Dizem que um Exército reconstituído geraria empregos, protegeria as fronteiras e daria assistência em desastres naturais.
Contudo, com os cofres públicos tão vazios que muitos funcionários do setor público não vêm recebendo seus salários, a criação de uma nova força armada exigiria apoio internacional prolongado, disse Jake Johnston, pesquisador do Centro de Pesquisas Econômicas e Políticas, em Washington.
Enquanto isso, Kenneth Merten, coordenador especial do Haiti no Departamento de Estado dos EUA, observou que "seria difícil imaginar que os EUA dariam apoio financeiro para a reconstrução de uma força armada haitiana".
Num dia recente em Cité Soleil, que tem mais de 400 mil habitantes, um grupo de homens sentados na sombra olhava para soldados brasileiros parando motoristas numa barreira. Perguntados sobre as ambições militares dos líderes políticos haitianos, os homens deram risada.
Semanas antes de deixar a Presidência, em fevereiro de 2016, Michel Martelly aprovou decreto ordenando a recriação do Exército. Mas não existe um Exército real.
"Onde vão conseguir dinheiro para pagar os militares? Como você acha que soldados haitianos esfomeados vão agir?" comentou o padeiro Jonas Nicolas, que tem idade suficiente para se lembrar dos esquadrões da morte assistidos por militares. "Eu prefiro o pessoal da ONU com nossos policiais."
Outros haitianos, porém, enxergam as tropas de paz como força de ocupação. "Não gosto de ver estrangeiros com armas percorrendo meu pais", disse Jean Acao, que tem uma barraca de salgadinhos.
A permanência das forças de paz no país tem tido altos e baixos. Os militares foram elogiados por aumentar a segurança, criar condições para eleições e fornecer apoio crucial após desastres naturais, em especial o terremoto devastador de 2010. Mas alguns soldados foram acusados de uso de força excessiva, de estupros e de abandono de filhos que tiveram no país.
Eles serão recordados principalmente, sem dúvida, por terem inadvertidamente desencadeado a pior epidemia de cólera da história recente, devida ao saneamento inadequado da base usada pelas tropas nepalesas da força de paz.
Alguns haitianos criticam a longa missão de paz por não ter satisfeito suas expectativas, sem levar em conta o fato de que construir instituições e estabilizar países frágeis como Haiti pode ser um processo muito longo.
"Depois de todos estes anos de Minustah e apoio internacional, o Haiti não deveria estar melhor do que está?" perguntou o ajudante de restaurante Stevenson Belizaire, caminhando ao lado de um canal entupido de lixo.
Tradução de CLARA ALLAIN
Fonte > FOLHA DE SÃO PAULO/montedo.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário