Engenheiro-chefe da obra do maior estádio do mundo, Herculano Gomes foi injustamente acusado de desvios
General Herculano Gomes, que nada ganhou para construir o Maracanã, durante palestra: luta para provar inocência Arquivo O Globo / Arquivo |
Caio Barretto Briso
RIO — “Engenheiro Herculano Gomes, ex-dirigente das obras do Estádio Municipal do Distrito Federal, oferece-se para construir ou fiscalizar construções de qualquer natureza”, dizia o humilde anúncio publicado nos classificados do “Correio da Manhã" e da “Tribuna da Imprensa", em fevereiro de 1952. Os interessados deveriam enviar uma carta para a Rua Jardim Botânico, 581, ou ligar para o número 46-1515. Mas as cartas não chegavam, o telefone não tocava. Ninguém queria contratar o homem responsável por erguer, em apenas um ano e dez meses, o maior estádio do mundo.
Noite de 16/06/1950: Herculano, engenheiros e operários da obra disputam primeira partida no Maracanã (Divulgação: Agência O Globo) |
A vida de Herculano Gomes divide-se em dois momentos: antes e depois do Maracanã. Considerado o maior especialista em concreto armado do país, ele foi convidado pelo então prefeito — e amigo de longa data — Ângelo Mendes de Moraes para ser o engenheiro-chefe da obra. Sua esposa, dona Celia de Campos Gomes, não gostou da ideia, mas acabou convencida pelo próprio prefeito de que seu marido era o nome certo para o desafio. Sua dedicação foi exemplar. No calor da obra, quando os operários trabalhavam 24 horas por dia, ele decidiu mudar-se para o canteiro, onde improvisou um quarto. Morou no Maracanã, longe de sua família, durante três meses.
— Como era general do Exército, ele não recebia salário pela construção. Estava cedido para a obra a pedido do prefeito. Nunca ganhou um centavo — conta uma das netas, a artista plástica Katie Hall Barbosa.
Terminada a Copa do Mundo de 1950, o sereno e elegante homem, filho de alfaiate e de uma dona de casa, foi acusado de ter desviado uma fortuna na casa dos 57 milhões de cruzeiros. Era a corda arrebentando do lado mais fraco, já que o próprio prefeito, pressionado pela oposição, instaurou a primeira de três comissões criadas para apurar possíveis irregularidades.
Durante os nove anos seguintes, até 1959, Herculano peregrinou por gabinetes de secretários, prefeitos, ministros e procuradores. Carregava consigo pastas e mais pastas, repletas de documentos e contratos que ele guardava zelosamente para tentar provar sua inocência. Com sua carreira de engenheiro estraçalhada, o general do Exército tentava salvar o que lhe era mais precioso: a honra de seu nome. Àquela altura, uma missão muito difícil.
— Fiz um relatório minucioso sobre o estádio do Maracanã. Havia irregularidades, mas nada contra ele. Não o citei em nenhum trecho do relatório, pois sabia tratar-se de um homem de bem — afirma Emílio Ibrahim, que assumiu em 1960 a Administração dos Estádios da Guanabara e depois tornou-se secretário de Obras do governo Carlos Lacerda.
Engenheiro procura emprego (anúncio no jornal Correio da Manhã, 10/02/1952 - Arquivo O Globo) |
POR FIM, A TRÁGICA MORTE DO FILHO
A vida de Herculano foi investigada por todos os lados. Os parlamentares estavam ávidos para encontrar qualquer indício de enriquecimento ilícito. Não encontraram nada que o incriminasse. Pelo contrário: com a falta de trabalho, as finanças da família — Herculano, a mulher e quatro filhos — estavam nas últimas. A casa de dois andares e quatro quartos na Rua Jardim Botânico —, onde hoje funciona uma clínica veterinária, perto da Rua Faro —, único bem do general, foi à execução judicial.
Em 1951, ele chegou a empenhar joias de sua esposa, tamanha a dificuldade. Dona Celia herdou um pequeno terreno em Juiz de Fora e acabou sendo citada em editais de ação executiva, pois o marido não teve meios de pagar o imposto cabível à herança de um único alqueire. Em documento redigido por ele mesmo em sua defesa, foi irônico: “Este é o talvez ímprobo manejador de milhões, que também teria permitido fossem dilapidados por auxiliares vorazes. Não teria aceitado o encargo se acaso suspeitasse que o Maracanã se transformaria em sinistro guet-apens (emboscada, em francês), armado pelo próprio chefe que me escolhera”.
Em entrevista ao “Jornal dos Sports", declarou ao repórter que seu processo “andou de mão em mão, como batata quente”. E interrogou: “Se fosse tão claro, tão definitivo assim, não acha que teria encontrado fim mais depressa? Não é estranho que se haja consumido em labirintos e só hoje venha a furo?” Herculano escreveu um livro, ainda não lido por ninguém, intitulado “A demolição de uma calúnia”. Katie, sua neta, prometeu para si mesma que um dia conseguirá publicá-lo.
— Vovô era um homem correto e digno, ligado à família. Apontava seus lápis impecavelmente com um canivete. Adorava ouvir música clássica. Lembro dele andando pela casa, enquanto a música tocava, imitando os movimentos de um maestro. Falava pouco e era muito carinhoso — lembra Katie.
Mas a maior tragédia de Herculano ainda estava por vir. Em 1961, apenas dois anos após ser inocentado das acusações, seu caçula de 20 anos caiu de mau jeito ao mergulhar da Pedra do Arpoador. Com o impacto da queda, Herculaninho ficou tetraplégico, mas não resistiu ao excesso de água nos pulmões e morreu dezoito dias depois. O garoto, único filho homem, era a alegria do pai.
— Ele começou a beber muito. Não encontrou mais respostas na Igreja Católica e virou espírita — conta a historiadora Vânia Fragoso Pires, também sua neta.
O quarto de Herculaninho virou seu escritório. Era lá que ele passava horas e horas lendo livros kardecistas. Dois anos depois, o general sofreu uma parada cardíaca na varanda do quarto. Era 11 de janeiro de 1963, ele tinha 63 anos.
Há não muito tempo, Katie e sua família conheceram um antigo funcionário do Maracanã — Isaías Ambrósio, falecido em 2012 — contratado pelo avô. Emocionaram-se ao ouvir dele que via Herculano, pois seu espírito ainda vagava pelo estádio.
Fonte > O GLOBO/montedo.com
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